"Idealization about factual events."
- JÚLIO ALVES STUDIO
- Mar 5, 2024
- 24 min read
Updated: Jul 21

Portuguese version
As primeiras pinturas sobre a paisagem tinham a ver com o oceano que ficava a curta distância da nossa casa e que eu conhecia muito bem porque frequentava a praia o ano todo. Essa experiência foi marcante mas isso não significa que o resultado que veio a acontecer com a pintura tivesse a ver só com isso, porque os trabalhos dessa altura tinham uma carga dramática que na realidade não existia lá, que muito provávelmente tinha origem nos mitos e epopeias relacionadas com as viagens marítimas. Nessas histórias existia sempre uma relação com as forças cósmicas que tinham o poder de modificar o destino dos homens. A paisagem podia ser duas coisas ao mesmo tempo; um cenário onde a natureza manifestava a sua beleza, povoando as memórias com a experiência da praia e numa outra dimensão mais dramática, evocando o seu lado mais sombrio, oculta aos nossos olhos, a versão que tinha sido construído por séculos de um relacionamento difícil, em que o mar encarnava as brutais forças da natureza que inspiravam sempre um grande medo. A história geralmente relata os factos na perspectiva dos sobreviventes e dos heróis, mas houve outros que foram vítimas da inclemência dos elementos. Náufragos de viagens sem fim, que deixaram de alguma forma um registo mais sombrio e tenebroso dessas aventuras e que, mais tarde, pela mão de poetas e escritores, se tornaram peças importantes da literatura portuguesa. Essas obras, como no caso dos Lusíadas, relatavam a saga marítima na perspectiva da gente simples e corajosa que deu o corpo ao manifesto numa luta desigual, mas que no final, tinham conseguido sair vivos do inferno com uma história para contar.
Esse era o enredo que eu tinha retido dos livros de história e das obras alguns autores portugueses cujos textos me impressionavam pela forma como descreviam a ousadia desses marinheiros que corriam um enorme risco ao entrar numa daquelas naus que não passavam de cascas de noz na imensidão turbulenta do oceano. Interessava-me ter presente esse contexto, porque ele introduzia outras cores no cenário. Para mim essas duas paisagens, a real e a poética, misturavam-se, tornando indistinta a fronteira entre a luz e a sombra, entre as belas praias de areia branca e os redutos do imaginário turbulento onde as regras eram outras.
Do meu ponto de vista, em relação à paisagem marítima, existia uma energia latente de perfil difuso que se projectava no meu imaginário e que dificilmente ficaria de fora da equação da pintura. O desafio era o de definir a identidade de uma paisagem com essas duas facetas que, embora muito diferentes, se complementavam como as faces de uma mesma moeda, incorporando a imagem natural e ao mesmo tempo um conteúdo subjectivo relacionado com os mitos e lendas. A combinação do lado luminoso da paisagem com a parte sombria do medo e da insegurança, uma combinação com potencial para transformar o cenário natural num palco de emoções.
Enquanto método de trabalho, não me interessava esmiuçar de que forma o real e o imaginário se poderiam combinar, interessava-me seguir a intuição e usar o sentimento e a experiência como fonte criativa, de uma forma directa, sem o peso da narrativa, numa expressão instantânea, partindo simplesmente da maneira como tudo isso me estimulava para produzir uma expressão com a qual me identificasse.
O fascínio pela paisagem marítima foi crescendo comigo. Olhar aquela imensa quantidade de água sempre instigou a minha imaginação, era uma experiência dúbia, com o seu lado de harmonia e gozo e ao mesmo tempo de desconforto e medo, como se aquela planície liquida me encantasse para me atrair para os seus abismos. O conceito por detrás daquilo era perturbador, a imensa força da natureza, a variedade escondida debaixo da superfície, a profundidade que eu experienciava nas minhas sessões de mergulho amador, o risco de estar emerso num meio onde não poderíamos sobreviver muito tempo. Era uma experiencia onde o prazer e o medo se combinavam de uma forma estranha, deixando um sabor amargo e doce. Penso que foi a partir dessa dicotomia que, desde muito cedo, eu comecei a construir as fundações do tema "Finisterra Experience".
O início - Quando o mundo era um paraíso e havia sempre uma praia de areias douradas por perto.
Nas primeiras obras desse período, a paisagem é mítica e usa elementos simbólicos que representam ideias e factos que não correspondem a um contexto lógico da realidade mas que têm por objectivo dar corpo a uma expressão em consonância com o "espírito do momento". Os símbolos podem ser instrumentos de navegação, antigas esferas armilares, navios decrépitos, vislumbres de uma "Atlântida" que emerge das sombras difusas de uma manhã nevoenta. Um paraíso perdido e depois reencontrado, no rescaldo da ousadia do pecado original. Tudo isso é acrescentado à ideia de paisagem para dar corpo a uma experiência multissensorial que não está confinada no tempo histórico nem na geografia do real. Essa paisagem é uma combinação de todas estas coisas. Era fácil eu perder a noção do tempo ao olhar a majestosa superfície do oceano. A zona marítima, com a sua luz e a sua beleza, tornava o paraíso numa coisa real, o mito era real, cada instante parecia poder durar para sempre. Esse era o sentimento que definiu a paisagem oceânica com lugar no imaginário que podia representar o início de todas as coisas, uma síntese palpável da génese do mundo. A água era um dos elementos primordiais que fazia parte do génesis, aquele que nos mitos criacionistas surgia como a fonte de vida, como se fosse um grande útero onde cabia tudo.
No mito do "Génesis", o elemento líquido estava sempre na transição do caos para a ordem, simbolizava a mudança, uma força universal que moldava o destino. As religiões em particular davam-lhe uma qualidade purificadora, os dilúvios universais faziam um reset completo na história, obliteravam a decadência e a degeneração humanas da superfície da terra. Essa carga mitológica deve ter assombrado os momentos mais tenebrosos de muitos marinheiros que se fizeram ao mar, na plena consciência de que, a aventura podia acabar mal. Ainda hoje essa conotação negativa não desapareceu por completo, os oceanos são ainda um mistério, a sua dimensão é vasta e a sua importância e influência no destino do planeta é mais uma vez tema central da civilização.
Ao longo do processo em que as pinturas desta série estavam a ser criadas, outro aspecto foi ganhando importância; a exploração da natureza. Nesses primeiros anos em que frequentava a praia, dedicava-me a explorar a costa e à minha escala, aquilo parecia-me gigantesco. Os dias eram longos porque eu os fazia render, vasculhava todos os cantos da praia e o resultado foi um hábito de observação que me levou a registar muitos elementos que mais tarde vim a utilizar como peças de um vocabulário gráfico. Naturalmente as memórias foram-se tornando difusas com o tempo, os detalhes perderam definição, é impossível revisitar com nitidez aquilo que nessa altura, era o meu foco, mas o essencial era registado e iria permanecer até hoje, os elementos importantes estavam a consolidar-se na minha cabeça e a identidade daquela paisagem ganhava a sua expressão. Parece-me plausível que a escolha das cores e das formas que se tornaram características das pinturas dessa fase, tenham tudo a ver com esse registo dos meus primeiros tempos e provávelmente, vão subsistir sempre como um modelo que reúne de forma codificada, todo um leque de experiências.
Afinal é isso que se pretende que a pintura seja.
Ponta do Sal - o sítio onde a terra encontra o mar.
A ponta do Sal é uma pequena península perto de Cascais. Esse local tem tudo a ver com a linha de contacto entre o mar e a terra. Lá existe sempre um atrito porque essa fronteira nunca é absolutamente estável, existe uma dinâmica própria de mudança que acontece em diferentes escalas de tempo que se processa em ciclos que se sobrepõem e interagem uns com os outros. Alguns desses fenómenos são percetíveis para nós, outros demoram tanto tempo a acontecer, que nem damos por eles. Sentimos o vaivém das ondas mas não o desgaste que a água e o vento fazem na rocha ao longo dos séculos. Percebemos que a areia é mais ou menos na praia em cada ano mas nunca assistimos ao esboroar das falésias e à alteração que isso faz na linha de costa.
Na Ponta do Sal existe um plano de rocha calcária, trabalhada pela água ao longo de centena de anos. Quando penso nesses sulcos negros recortados na superfície da rocha, vejo-os como um mapa de um desses ciclos temporais que levam muito tempo a acontecer. Existe uma falsa rigidez, porque afinal toda essa massa rija, vai moldar-se pela persistência da água. Mais uma vez o elemento líquido, com a sua macieza e fluidez, exerce uma força capaz de partir a pedra. Talvez a percepção dessa qualidade, quando observada com atenção, seja motivo para encarar os oceanos como uma energia que pode mudar o destino de muitas coisas.
Era na Ponta do Sal onde eu passava grande parte do tempo a observar os pescadores que se empoleiravam nas últimas rochas do cabo, balançando-se sobre as ondas que se desfaziam mesmo por baixo deles em novelos de espuma branca.
Durante o verão, no areal, centenas de pessoas estendiam as suas toalhas e deitavam-se confortavelmente sob os seus guarda-sóis, mas nós, um pequeno grupo de rapazes irrequietos, preferíamos o tapete irregular dos blocos rochosos mais a norte, onde poucos se aventuravam. Era aí que passávamos a maior parte do tempo, empoleirados nesse chão áspero no limiar do esboroar das falésias, por cima viam-se fendas sumptuosas para nos lembrar que em qualquer altura, um daqueles monstros poderia soltar-se e juntar-se à enorme pilha que já lá estava, uma ameaça que não nos afastava porque não havia memória de alguém, alguma vez ter visto um desses grandes blocos a cair. Para nós que brincávamos debaixo daquelas massas gigantes, não era um drama, pelo contrário, sentíamos-mos a explorar uma nova fronteira, como se aquilo fosse a aventura das nossas vidas.
Ao longo dos anos este local permanece como uma referência da paisagem atlântica e muitos dos elementos gráficos que aparecem nas minhas obras estão de alguma forma relacionados com o que ali existe. A certa altura série "Finisterra Experience" deu origem a um subgrupo de pinturas em que se utilizaram técnicas de desenho, pintura, fotografia, colagem e escultura, tudo junto nas mesmas obras e por isso a coleção expande-se em várias direções e muitas vezes é difícil saber de que forma o conhecimento da paisagem e a memória são assuntos separados, eventualmente existem ali outras camadas de informação provenientes de lembranças fugazes ou fragmentos de acontecimentos perdidos no tempo que por alguma razão se colam a este ambiente atlântico.
O ponto central desta série é a presença abrangente do oceano que de imediato nos transporta para um isolamento introspectivo, existe algo de hipnótico na superfície cintilante que nos dias luminosos nos ofusca a visão. Existem outros fatores fascinantes, como a forma das rochas que são visíveis nos cortes das falésias, com as suas cores contrastantes em camadas ondulantes que mimetizam um oceano fossilizado e que dão continuidade ao movimento oscilatório das ondas. Em alguns trabalhos desta fase, existem formas geométricas que são representações estilizadas da paisagem urbana visível ao longe, construções que despontam atrás da primeira linha da costa e representam a presença humana que aqui no cabo, no espaço aberto em frente ao mar, se diluem porque são apenas uma sombra subalternizada pela imensidão das águas que irresistivelmente nos chamam noutra direcção.
O tempo foi passando e ao longo de várias décadas a Ponta do Sal foi um palco revisitado muitas vezes por mim e pelos meus amigos. Lembro-me de assistir de forma recorrente ao pôr-do-sol em todos os cambiantes possíveis, ao longo de todas as estações do ano. Houve dias felizes e outros nem tanto, mas sempre aquele local parecia ser o único pedaço de terra firme, resguardado das convulsões do tempo, o lugar ideal para recuperar o fôlego das aventuras juvenis, de acertar o passo com a vida. Havia também o café do outro lado da estrada Marginal onde as conversas muitas vezes se tornavam em intrincados e confusos debates filosóficos, que eram a consequência natural das crises existenciais de crescimento. Estar ali era como saltar de um comboio em movimento e cair de pé sem qualquer problema, a salvo dos solavancos da vida. A perspectiva limpa do oceano na nossa frente era um dos fatores que nos induzia tranquilidade, esse sentimento de estarmos protegidos da insanidade do mundo, de estarmos abrigados num santuário em que a corpulência sombria dos futuros incertos não existia, tornava-o num dos melhores sítios em que podíamos estar, uma finisterra batida pelos ventos oceânicos que expulsavam da nossa consciência as dúvidas dos verdes anos, que nos resguardavam dos fantasmas de uma vida rotineira, das obrigações institucionais representadas pela compleição compenetrada da geração dos nossos pais, remetendo todas essas coisas indesejadas para um interior continental, esquecido para nós, apagado pelo nevoeiro difuso das manhãs mal dormidas.
Depois disso e ao longo de várias décadas, a Ponta do Sal foi um palco revisitado e muitas conversas aconteceram em amenas tardes, a propósito de qualquer assunto que a nossa imaginação se lembrasse de trazer à baila. Normalmente eram convívios que se prolongavam pelas indolentes tardes de pescaria à espera que algum peixe mordesse.
A praia não era apenas frequentada durante o dia. Especialmente no verão, era normal encontrar gente em grupinhos aconchegados à volta de um rádio ou a beber uns copos, aconchegados em tocas que escavavam na areia ainda quente da canícula diurna. Uma noite, já tarde, chegámos à Ponta do Sal depois de uma festa numa cave apinhada de gente, desejosos do ar fresco do mar. Como sempre acontecia naquele sítio, era o som das ondas que dominava a noite. A certa altura, quando esse ritmo encantatório começava a tomar conta de nós e o sono já espreitava, surgiu da sombra o vulto de um rapaz vestido de preto, carregando uma mochila enorme. Falou de forma amigável e disse que andava a viajar pelo país e escolhera aquele local para passar a noite. Perguntou se podia juntar-se a nós. De olhar persistente, cabelo em desalinho, tinha uma expressão venturosa de quem tem boas notícias e parecia ansioso por falar. Tomou o seu lugar na roda e começou a fazer perguntas, na verdade não parecia nada constrangido por estar entre estranhos. Logo a seguir ao quebra-gelo que tinham sido as perguntas da praxe, ele nunca mais parou de falar e começou a descrever a sua longa saga através da América do sul. Lá longe, num sítio onde o diabo perdeu as botas, ele tinha encontrado pessoas que praticavam certos rituais que tinham mudado radicalmente a sua perspectiva da vida. O tipo contou histórias que para nós eram fantasias de um alucinado, bruxaria, feitiçaria, adivinhação, ele estava com todo o gás e à medida que ia falando, parecia cada vez mais excitado com a sua própria história. Já perdidos no meio daquela narrativa, a malta estava já meio a dormir, demasiado zonzos para discernir se aquela conversa tinha algum tipo de lógica. Aos poucos, um a um, fomos caindo num torpor beneplácito. O rapaz não parava de tagarelar, como se as palavras, ao sair da sua boca, congregassem uma energia extraordinária que o mantinha cada vez mais desperto, a certa altura parecia de tal modo energizado que, o que nós viamos entre nós, era um duende eléctrico relatando segredos e fantasias de uma terra estranha. Foi ali que ouvi pela primeira vez a expressão Xamanismo. Os temas foram-se encadeando até que surgiu uma coisa diferente que nos despertou do terpor da noite, ele propôs fazer uma leitura acerca do nosso destino. Não percebemos logo sobre o que ele estava a falar, até ele explicar que conseguia ler o futuro nas pedras, não em qualquer pedra, apenas aquelas que ele guardava na mochila e que ele dizia que eram especiais. Uma das raparigas do grupo ofereceu-se para a experiência e o Alphonse, era esse o nome dele, sacou de uma pequena bolsa de pele escura e retirou lá de dentro umas quantas pedras de formas irregulares que pareciam cristais coloridos, depois, colocou no chão um lenço preto com círculos concêntricos e numa voz grave, começou a entoar um cântico numa língua estranha para nós. Agora estava mais calmo, tinha os olhos fechados e parecia muito compenetrado e foi óbvio que ele estava a levar aquilo muito a sério, atirou as pedras para o pano e a partir dessa disposição aleatória começou a tecer considerações sobre possibilidades genéricas que podiam estar no caminho de qualquer um de nós, Mafalda que parecia ansiosa em descortinar o seu próprio destino, absorvia cada frase como se aquilo fosse uma verdade absoluta, e talvez porque ele a fixava intensamente, ela parecia suspensa naquelas palavras, mas para nós, que estávamos um pouco de pé atrás, aquilo parecia mais uma sessão de profecias inventadas ao sabor da intuição do Alphonse que estava muito atento à forma como a rapariga reagia às suas palavras. Ainda hoje estamos para saber se tais conjeturas sobre o futuro exerceram alguma influência no destino da Mafalda mas certamente que abriram um caminho que não existia antes.
O cântico xamânico do Alphonse ficou na nossa memória, uma espécie de rap cadenciado, modulado por expressões vívidas e significados enigmáticos. O resultado prático da conversa foi como consultar um oráculo com um dúbio sentido nas suas palavras que a Mafalda não sabia bem como interpretar e que podiam significar muitas coisas. Mais tarde quando o conceito de xamanismo já não era tão estranho para mim, vi nesse acontecimento uma curiosa alegoria; o lugar da Ponta do Sal que tinha tudo para ser considerado um ponto nevrálgico das nossas deambulações, era afinal como o mapa de círculos do Alphonse, só que ali as pedras caíam pelas ravinas abaixo, como se fossem lançadas por um gigante que esperasse ver na sua disposição à borda da água, significados ocultos sobre o estado das coisas, sobre os segredos bem guardados da natureza. Uma alegoria interessante considerando que o sítio era para nós como um santuário, o ponto onde espreitávamos o mar, o cabo onde se pré-anunciava o estado do mundo, para quem o quisesse ver. Também Alphonse viu qualquer coisa de notável naquele sítio e descreveu-nos essa impressão de uma forma que nos era familiar. Ao afirmar que sentia a cadência das ondas a esculpir a paisagem como um calendário perpétuo. Via na pele da rocha polida por ventos e marés, um gesto da própria terra a romper com o seu lento movimento, as camadas tectónicas, desde os abismos, até finalmente alcançar a atmosfera salgada. No final da noite, a maioria de nós não ficou convencida pelas capacidades do Alphonse em ler o futuro nas pedras, mas no que dizia respeito à sua eloquência, não há dúvida que o rapaz sabia expressar-se.
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